DESCOMPASSOS
o alcance da minha voz
se não sei
não sei se grito ou se sussurro
o alcance dos meus passos
se não sei
não sei se corro ou se passeio
o alcance dos meus braços
se não sei
não sei se te enlaço ou se te aceno
o alcance dos meus olhos
se não sei
não sei se te contemplo ou se te miro
o alcance do meu tempo
se não sei
não sei se me liberto ou me condeno
o alcance dos meus desejos
se não sei
não sei se os realizo ou os embalsamo
o alcance dos meus medos
se não sei
não sei se me entrego ou me defendo
o alcance do meu silêncio
se não sei
não sei se o contemplo ou nele me sepulto
o alcance da minha desordem
se não sei
não sei se me ajeito ou me submeto
o alcance da minha loucura
se não sei
não sei se a vivo ou se a recalco
o alcance da minha sanidade
se não sei...
prefiro abandonar todas as regras
os metros as réguas e os compassos
e mergulhar na insana inconseqüência
do que sempre quis ser ou sempre fui
mesmo vivendo-a sem o saber
Tentei vida afora manter-me na medida
que me diziam todos ser a mais certa
vesti-me das insanidades as mais belas
das alheias certezas dos infelizes
tornei-me insano por princípio
mutilei-me por convicção e fé
mas não dei conta de alcançar assim
qual era o alcance de mim mesmo
nem onde é que me alcançaria a mim...
Qual é o alcance do meu amor
se não sei... porque não sei o que sou
é assim que deverei então vivê-lo
pois este não saber ensina-me então a amar... o amor que nunca será do meu saber... eu tu nós amaremos... sem saber, apenas os sabores ficarão como lembranças numa tarde de lua cheia ou numa manhã chuvosa ou outono. Sem saberes, somente sabores...
CAIXA DE PALAVRAS
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
Confeccionada com letras
Maiúsculas e minúsculas
De todos os idiomas
Pra que qualquer que queira
Por ali se pronuncie
Fixam suas partes pontos
Vírgulas acentos graves e agudos
E a adornam sinais ortográficos
O esquecimento são suas chaves
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
Pesando a leveza das plumas
Comportando a estória das minhas vidas
Presente antepassadas e esquecidas
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
E dentro dela todos os signos
Todas as letras do alfabeto
E quando as alinhavo
Juntando letras da minha história
Revolvo entranhas com minhas lembranças
Do mundo que me escreveu
Dos silêncios que me redigiram
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
Onde se comprazem
Possibilidades indecifráveis
A espera de uma construção
Pra numa oração insubordinada
Pronunciar-me para mim
Reescrevendo-me para o mundo
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
Cheia de letras que se conformam
Ou me deformam
Diante do meu tempo
Meus medos e desejos
Pra contarem de mim em sonhos
Lembranças e memórias
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
Cheia de letras e sinais
Pra que eu possa um dia
Reescrever-me ou falar-me
Pra mim mesmo
Tenho em minhas mãos
Uma caixa de palavras
E me alegro e me divirto
Quando com suas letras
Começo a formar por linhas
Ainda tortuosas
Uma possibilidade de ser feliz
Minha caixa de palavras
Guarda-se no silêncio
Revela-se na pronuncia...
Mas
Minha caixa de palavras
Tem um fundo falso
Ali onde se eternizam nomes próprios
Escritos um dia sobre meu corpo
Guardados ali como segredos
Mas que não dei conta de suportar
Restaram deles em mim
Profundas marcas e cicatrizes
Restos ainda a me nomear
Esses nomes próprios
Guardados no conforto do fundo falso
Desmanchar-se-ão um dia em letras
Quando do meu corpo marcado
Cada palavra eu souber soletrar.
Encasulada
Sou prisioneira de meus medos
que se recolhem se aconchegam em casulos
tecidos com os próprios segredos
arrematados com nós emaranhados
atados cegamente sós cegos nós
Minhas asas roçam
as bordas do casulo ressequido
e talhado no tempo
que num sem pressa acostumou-se
a larvas inquietas e infelizes
Sei-me prisioneira dos meus medos
remexo segredos afrouxo nós
neste avoar tão só de solidão
mas é vôo de avoar
O casulo ficará pendurado
num galho seco do tempo
para relembrar aqueles tempos
onde a pressa não passava
de receios em meio aos medos
do azul do céu
Ainda prisioneira sinto minhas asas
sinto minhas asas desprenderem-se
desse meu corpo que ainda não sei
se tenho
ou se penas habito
e que revela suas marcas
e com tantos traços desenha
horizontes onde a esperança
possa ser pouso para uma borboleta que avoa
mesmo que ainda desse avoar
haja ainda tantos segredos a decifrar...
PENSANDO VIRO PEDRA
Pensei-me e num descuido tornei-me pedra
vi-me no meio de caminhos
desviada chutada pulada por pés incômodos
e como não sabia ir para as beiradas
ou desviar-me pelas bordas dos meios
ficava atenta ao tropel de cavalos gado e gentes
inúmeras vezes asfixiada por botas barro e bosta
Mas a chuva insistia em me manter polida
Foi quando veio um menino e tomado-me em sua mão
olhando de soslaio com um tanto de deferência
atirou-me num passarinho
Como não podia desviar-me por vontade própria
torcia que voasse mais ligeiro que eu
senti suas penas roçarem minha poeira
foi de raspão ...
Ficara perdida no meio do mato a beira d'água
até que outra mão me toma descuidada
e atira-me no meio do lago
donde faço círculos infinitos
na uniformidade concêntrica das águas
Como não podia flutuar
perdi o encontro cheio de encantos
do sol que se punha
com a lua cheia de furor erótico
que vinha para se oferecer aos enamorados
desvirginando a noite salpicada de estrelas e sonhos
Chuvas torrenciais me desacomodam
do fundo lodoso e frio das águas
e deixa-me a margem do rio donde vejo
peixinhos assanhados saltitando insetos
Em minha inércia era toda inquietude ...
Na mansidão do banho de lua que tomava
respingada de sereno coaxar de sapos
brilho dos pirilampos balés de curiangos
vi-me refletida nas águas calmas do riacho manso
sonhei uma pororoca pois dali não sairia mais
por mãos descuidadas de meninos travessos
Rio pequeno não tem pororoca
pensei-me então por esquecidos tempos...
Enquanto pedra ficava a mercê de mãos alheias
torcendo desvios beiradas e superfícies
vontades peraltices e necessidades ...
Caminhando na beira do rio buscando sua nascente
buscando a mina de onde brotava estas águas
tropecei lamentoso num reprimido pedaço de desejo
Foi quando desejei não pensar-me mais.
AS CIGARRAS
Uma cigarra interrompe a tarde
para ofertar-lhe um concerto.
Cantou de tanto amor
e depois morreu para se perpetuar.
A chuva
seduzida por tal canto
veio fazer-lhe louvação.
O sol pôs-se então
preguiçosamente a descansar.
E um menino molhado de inocência
brincava displicentemente
se enlameando de alegria
enquanto a chuva chovia.
Uma menina outros mais
outras meninas meninos
enchiam a tarde de alegria
enquanto o sol ressurgia.
Quando a cigarra canta depois do meio dia
em algazarra e estripulia meninas e meninos
esperam chover a chuva
para enlamearem-se outra vez
de inocência e de alegria.
Parece que ouço uma cigarra ao longe...
ou são gritos meninos lambuzados de alegria?